OPINIÃO: A PIADINHA É QUE DÓI

 

Num país com tantos problemas crônicos de ordem social, econômica e cultural como o Brasil, uma Juiza Federal de São Paulo achou de bom tom criar mais um: o de condenar um comediante pelo seu simples exercício artístico de contar piadas à prisão. É sobre essa materialização de uma coisa que mais parece uma piada ruim que abordaremos nesta Coluna de Opinião (Foto de RDNE Stock project para Pexels)

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AVISO AOS LEITORES: ao contrário de nossas reportagens, a Coluna de Opinião traz, como o próprio nome já diz, a opinião de quem a escreve sobre fatos concretizados, não representando necessariamente um posicionamento oficial do Podcast Cafezinho com William Lourenço, enquanto veículo de imprensa (emitido somente por meio de nossos Comunicados Oficiais e Editoriais).

Por William Lourenço

Nos tempos da execrável ditadura militar no Brasil, a arte foi uma forma encontrada para criticar as repressões de direitos e, de alguma forma, expor os podres daqueles que vestiam farda e que haviam se apoderado indevidamente de Brasília. A comédia estava incluída.
Aos militares de ego inflado, qualquer crítica à ditadura era vista como uma afronta à própria nação. Piada com as Forças Armadas então... Comediantes de primeira categoria como Juca Chaves, Ary Toledo, Jô Soares, Carlos Alberto de Nóbrega, dentre outros, receberam por diversas vezes visitas dos chamados censores, que pegavam seus textos e, a depender de sua conveniência, deixavam ser apresentados (no teatro ou na TV) ou não. E quando não deixavam, estes comediantes iam pra delegacia. O Juca, por exemplo, chegou a ser exilado do Brasil. O Ary, preso.
Há quem diga que esta ditadura acabou há 40 anos, mas o pensamento tacanho de se perseguir quem faz piada não.
Curiosamente, na dita democracia, alguns dos que alegaram ser injustamente perseguidos no antigo regime de poder foram colocados pelo voto em mandatos... e passaram a perseguir, usar o aparato do Estado e censurar de todas as maneiras possíveis os comediantes.
O Casseta & Planeta: Urgente, um dos vários programas de TV que moldaram meu senso de humor, foi alvo de 132 processos em somente um ano, de policiais que se sentiram ofendidos com as piadas feitas por seus integrantes. Os gaúchos também se revoltavam com as referências feitas a eles toda terça-feira à noite na Globo, assim como os deficientes físicos e a comunidade LGBT (que, à época, só tinha essas quatro letras e era fácil de se identificar). A emissora respondia os críticos, dizendo que era melhor que o empenho fosse transferido para mudar a realidade do que criticar a ficção. Atualmente, ela é a maior porta-voz do oposto.
O Pânico na TV e o CQC foram outros programas que irritaram bastante os ridículos que se julgam autoridades, pois traziam à tona as incoerências, hipocrisias e atos reprováveis dos políticos e demais figuras públicas. E ainda faziam os telespectadores rirem deles por isso.
Nos palcos de bares, o stand up comedy (formato que, originalmente, surgiu nos Estados Unidos) passou a ganhar cada vez mais força por aqui, com comediantes desta cena passando a aparecer com mais frequência na televisão: Rafinha Bastos, Danilo Gentili, Maurício Meirelles, Murilo Couto, Léo Lins, dentre muitos outros. As piadas passaram a ser cada vez mais incisivas, sobretudo contra os políticos, e a partir daqui, o ódio à comédia passou a ser institucionalizado.
Estúpidos se uniram aos mal intencionados, de direita e de esquerda, para convencer outras pessoas ainda mais estúpidas e menos mal intencionadas a repetir, como papagaios de pirata, que piadas, sarcasmo, ironia e todos os elementos relativos da comédia enquanto arte eram responsáveis por preconceitos contra minorias, aumento do dólar, as guerras entre países, a seca do Nordeste (por sorte, Deus mandou um pernambucano pra acabar com esse problema depois de 179 anos, né?) e tudo que há de ruim no mundo e na humanidade.
Numa das ações judiciais mais idiotas da história da nossa democracia, em 2018, o STF (que, atualmente, tem tomado decisões bastante questionáveis e passíveis de serem ridicularizadas) teve de declarar inconstitucional um trecho da Lei Eleitoral que proibia comediantes de fazer sátiras com políticos durante a campanha eleitoral. O então ministro decano, Celso de Mello, teve de dizer que "o riso deve ser levado a sério e junto ao humor são verdadeiras metáforas da sociedade. São renovadores, esclarecedores e por isso que são temidos pelos detentores do poder".
Luiz Fux chegou a fazer uma separação entre a censura proposta e a alegada disseminação de fake news contra políticos, que justificaria a medida. Todos os ministros, incluindo o relativamente novo Alexandre de Moraes (integrado à corte em 2017, após a morte de Teori Zavaski), repetiram o entendimento de que a Constituição Federal assegurava a liberdade artística e de expressão dos comediantes.
Os problemas sociais, econômicos e culturais do Brasil não foram criados por alguém que, um belo dia, resolveu interpretar aquilo que viu de forma que viesse a provocar riso em vez de choro. Contudo, em vez daqueles que podem, de alguma forma, resolver estes problemas apresentar as soluções e agir, preferem criar mais problemas, totalmente desnecessários à sociedade, para manterem seus privilégios e os pobres ainda mais pobres, os miseráveis ainda mais miseráveis, os estúpidos ainda mais estúpidos e o país, que já é muito desigual, chegar num ponto em que se rachará por completo.
Nesta terça-feira, uma Juiza Federal de São Paulo condenou o comediante Léo Lins a oito anos de prisão, além de obrigá-lo a pagar uma multa que chega a quase R$ 2 milhões, por causa de um show de humor feito por ele em 2018, em que foram feitas diversas piadas a diversos grupos sociais, inclusive minorias (que se consideram intocáveis e incriticáveis). O Léo fez fama por contar piadas em tom mais ácido, fazendo seu público rir sobre assuntos que, para alguns, não se deveria rir.
A ridícula alegação utilizada pela magistrada é a de que tais piadas fomentavam a intolerância e ofendiam nordestinos, membros da comunidade LGBT e todas as outras letras que eu esqueci, gordos, magros, indígenas, negros, brancos, altos, baixos, casados, solteiros, viúvos, corintianos, palmeirenses, cariocas, paulistas, gaúchos, lulistas, bolsonaristas, heterossexuais, brasileiros e brasileiras... Grupos estes que, em quantidade considerável, pagam ingresso para assisti-lo em seus espetáculos e fazem questão de se divertir naquele ambiente, pois é pra isso que a porcaria de um show de comédia foi feito.
A base para a sentença ridícula desta magistrada foi uma lei igualmente ridícula: a Lei Nº 14.532/23, também conhecida como Lei Anti-Piadas, sancionada pelo Presidente Lula em seu primeiro ano na volta à Presidência. O mesmo que chegou a reclamar publicamente que o mundo estava chato demais e que criticou até o tal do "politicamente correto". A tal da lei, que foi redigida pelo Congresso Nacional durante o governo de Jair Bolsonaro e que foi aprovada lá com votos de integrantes do PT e do PL, alterou alguns trechos do Código Penal, fazendo com que manifestações em caráter humorístico que alguém venha a entender como preconceituosas sejam passíveis de prisão. Então, a quem vier dizer que tal absurdo só está acontecendo por causa do seu Luiz Inácio e que não ocorreria com seu Mito, vá mentir pra outro.
Em um país decente, já deveria ter sido discutida a inconstitucionalidade desta lei. Num país sério, tal lei sequer deveria ter sido redigida ou aprovada. O Brasil não é nem um nem outro, infelizmente.
A condenação do Léo Lins ficou ainda mais feia à Justiça, pelo fato de que dias antes, um cantor de funk foi solto no Rio de Janeiro após ter sido acusado de fazer apologia ao crime e à facção Comando Vermelho em suas músicas. Alegaram que o Poze do Rodo estava somente exercendo sua liberdade de expressão. E o Léo Lins não? Sério que uma piada é pior que isso? Só que não para por aí...
As recentes declarações do Presidente da República em insistir na chamada regulação das redes sociais aos moldes do que é aplicado pelo Partido Comunista na China (e que o STF vai dar uma mãozinha amiga já nesta quarta-feira), a tentativa de blindagem à primeira-dama sempre que ela faz alguma cagada no exterior e queima ainda mais sua imagem pública, as medidas judiciais cada vez mais questionáveis e cada vez mais questionadas pelos próprios profissionais do Direito brasileiro, os assaltos ocultos a aposentados e pensionistas do INSS, as promíscuas relações de quem se diz autoridade com quem deveria julgar (vale até fazer cantoria), as pessoas horríveis e a cada vez mais evidente mistura do mal com pitadas de psicopatia no Judiciário, Legislativo e Executivo da União, estados e municípios estão sendo pancadas duras demais à já espancada democracia e a todos nós, brasileiros.
O humor, repito, não é o causador destes problemas, muito menos seu solucionador, mas serve de analgésico às almas que tanto sofrem com as dores dilacerantes da vida real. Eu sei disso melhor do que ninguém.
Há mais de 10 anos, tudo que busquei fazer no que se diz de conteúdo foi para fazer rir quem viesse a assistir. Ainda que o Podcast Cafezinho, que tem um público e uma abordagem completamente diferente, esteja há 5 anos sendo realizado (posso dizer) com sucesso, até aqui eu busco, de certa forma, manter o lado comediante no hoje jornalista. Essa Coluna de Opinião é um exemplo. Se tivesse que abordar o assunto de forma mais séria, seria muito mais irritante para mim em escrever e muito mais pesado a quem fosse ler.
A comédia me acompanha desde sempre: na minha formação como ser humano, nas interações sociais e nas iniciativas artísticas que tive... Um dos livros que publiquei é, resumidamente, um texto de stand up que pretendia apresentar, mas que por circunstâncias adversas, não pude. Então, sempre que ocorrem esses ataques infundados e esse movimento de criminalização de quem, em seu exercício artístico garantido por aquela que é a mais importante lei de um país, faz os outros rirem, eu vou me revoltar e ser um dos que serão contra.
No caso do Léo Lins, aos que discordam de seus textos ou não riem do que ele apresenta como piada, bastaria ignorá-lo e buscar quem venha a satisfazer seus critérios. E quando, por simples birra ao Léo, defendem medidas censórias às piadas como um todo por meros quesitos subjetivos, até aqueles comediantes (ou mesmo os bobos da corte de político) que atendem a seus requisitos são punidos. Isso não é entendido em lugar nenhum como democrático, ao menos em nenhum lugar verdadeiramente democrático do mundo. É tão mais fácil ir atrás somente daquilo que gosta do que censurar o que não gosta, mesmo que isso venha a afetar os outros...
E quando a própria Justiça, que já está em descrédito com a maioria da população pelos mais diversos motivos, vai contra o que a própria Carta Magna descreve como garantia fundamental daquele Estado Democrático de Direito, sua autoridade passa a ser cada vez mais questionada, ridicularizada, desacreditada, até chegar ao trágico ponto em que ela passa a ser ignorada, desacatada, desobedecida e rechaçada. E não será a piada a causadora desse problema institucional. Quem está no Poder Judiciário e age contra o equilíbrio dos poderes, talvez esteja tentando fazer alguma piada de mal gosto com a sociedade. Assim como os políticos que se utilizam dos mandatos no Legislativo e no Executivo para roubar, ludibriar, suprimir direitos e manter os brasileiros nesse eterno e cansativo "nós contra eles". Só que devemos lembrar: piadas são coisa de comediantes, sejam elas boas ou ruins.
Mas se até jornalista é condenada a indenizar desembargadora por divulgar notícias que já eram públicas quanto a seu absurdo salário, um comediante ser condenado por fazer rir já deveria ser a coisa mais natural no Brasil. E acreditem: mal humorados de direita e esquerda adorariam que fosse assim.
O problema é que, enquanto existir um ser humano vivo na Terra, haverá a ironia ao mundo que o rodeia. Isso, nenhuma arbitrariedade poderá impedir.
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