OPINIÃO: A TRAGÉDIA DA "SOCIEDADE DO ESPETÁCULO"

A mais nova Coluna de Opinião deste site colocará o dedo na ferida e abordará a febre do momento: os tais bebês reborn e os problemas internos que suas "mães" estão tentando esconder com eles (Foto de Amin Hope para Pexels)


AVISO AOS LEITORES: ao contrário de nossas reportagens, a Coluna de Opinião traz, como o próprio nome já diz, a opinião de quem a escreve sobre fatos concretizados, não representando necessariamente um posicionamento oficial do Podcast Cafezinho com William Lourenço, enquanto veículo de imprensa (emitido somente por meio de nossos Comunicados Oficiais e Editoriais).

Por João Gabriel Silva

Vivemos tempos em que a realidade parece não bastar. Tudo precisa ser duplicado, encenado, exagerado. E nesse palco contemporâneo, onde a vida cotidiana virou uma espécie de teatro contínuo, onde pessoas exageram seus papéis, surgem figuras intrigantes, para dizer o mínimo, como as mães de bebês reborn: mulheres que cuidam de bonecas super realistas como se fossem filhos de verdade. 
Para muitos, trata-se de uma excentricidade, um delírio materno ou um delírio coletivo de uma sociedade doente, mas talvez esse fenômeno nos diga mais sobre o mundo em que vivemos do que estamos dispostos a admitir. Guy Debord, filósofo francês que escreveu A Sociedade do Espetáculo, diria que essas mães são personagens perfeitas de nosso tempo, pois tudo precisa ser espetacularizado para viralizar. 
Para ele, nós vivemos numa sociedade em que tudo é mediado por imagens e representações, e veja que ele falava isso ainda em meados do século XX. A vida real perde espaço para a vida encenada, editada e postada, onde qualquer coisa vira meme e a diversão é ver a estupidez humana no seu mais alto grau. 
A maternidade, que sempre foi carregada de idealizações, se torna mais um papel a ser interpretado: com direito a ensaios fotográficos, vídeos no YouTube, unboxings de roupinhas e tutoriais sobre como "dar banho" no bebê que nunca chorará, e até alguns empreendedores que já criaram creches para educar e vigiar tais bebês. 
No espetáculo da maternidade reborn, o cuidado não é apenas um gesto íntimo: é uma performance, que precisa ser mostrada para o maior número de espectadores. A boneca, embora inerte, torna-se um canal poderoso de expressão emocional, mas também um produto de consumo simbólico, além de uma manifestação narcísica bem acentuada. Não se trata apenas de ter um filho de mentira, mas de viver uma versão editada da maternidade: sem as birras, noites em claro ou boletins escolares, preocupações com os imprevisíveis que podem acometer a saúde do pequeno rebento de plástico... Ou seja, não se quer viver o ônus de cuidar de um ser vivo que exige cuidados constantes. 
Se Debord oferece uma lente crítica para a sociedade da imagem, Nelson Rodrigues nos ajuda a entender o lado humano e trágico dessa nova moda. O autor jamais perdoou a hipocrisia social, mas também nunca negou a complexidade do desejo humano. Em sua galeria de personagens suburbanos atormentados, esposas solitárias e adolescentes reprimidas, há sempre uma busca desesperada por afeto, reconhecimento, sentido, atenção, palco. Rodrigues talvez visse nessas mães um gesto obsceno, sim, mas não no sentido vulgar. Obsceno como algo que expõe o que todos sentem, mas poucos têm coragem de mostrar: a solidão. 
A falta. A vontade de ser necessário a alguém. 
Cuidar de um reborn pode parecer patético a olhos apressados, mas é também um grito silencioso: "Eu ainda sei amar, mesmo que não haja ninguém ali." Em uma de suas frases mais célebres, Nelson escreveu: “Toda a unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar.” E talvez, por isso, seja tão difícil olhar para essas mães com empatia, pois elas quebram a norma. Elas fazem algo que não está no roteiro social, que não cabe no feed higienizado da família perfeita. Elas amam aquilo que não responde, e isso nos desconcerta — talvez porque, no fundo, todos já nos sentimos assim. Não se pode ignorar, também, o contexto social e psicológico. 
Há mulheres que buscam os bebês reborn após perdas gestacionais. Outras os veem como formas de conforto em meio à depressão ou como uma extensão do instinto materno que não encontrou realização plena. Há, inclusive, quem colecione por estética, como se tais bebês fossem obras de arte anatômica. E, em certo sentido, são mesmo. 
Nesse mundo, a mãe do reborn não é menos mãe: ela é a mãe no seu estado mais estético, simbólico e espetacularizado. No fim das contas, as mães de bebês reborn nos forçam a encarar questões incômodas: o que é ser mãe? É necessário um filho real para que o cuidado seja válido? Podemos amar uma imagem com a mesma intensidade que amamos alguém de carne e osso? 
Questões que poucos pensam, já que pensamento crítico se tornou artigo de luxo em uma sociedade tão rasa como a nossa. Aparentemente estamos todos presos num teatro de sombras, em que todo ato precisa ser espetacularizado pois há milhões de espectadores na plateia esperando. Nelson talvez dissesse que o amor sempre foi uma farsa, mas uma farsa necessária. 
Entre o espetáculo e o drama íntimo, as mães reborn são, talvez, uma metáfora viva para o nosso tempo: um tempo em que até o amor precisa ser provado em silêncio, encenado para si mesmo, embalado em plástico e vestidinho de azul ou rosa. 
É algo a se pensar, como meu amigo Gael me questionou: esse fenômeno seria um surto coletivo ou consequência de uma infância mal resolvida? Confesso que, por enquanto, acredito que seja as duas coisas. Convido aos leitores a pensar sobre isso.
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